JACQUELINE JONER
CAMINHO PERCORRIDO
OS COLONOS
Encontrei com os colonos na década de 70, grávida do primeiro filho, Pedro. Formada em jornalismo, captava fotografias para uma revista chamada "Agricultura e Cooperativismo", editada pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, viajando pelo interior do RGS. Munida de uma objetiva 28 mm, grande angular, mostro com precisão e riqueza de detalhes a realidade da vida dos agricultores minifundiários. Donos de seis a oito hectares de terra para distribuir entre mais de meia dúzia de filhos. A escolha da lente estava diretamente ligada a uma necessidade de aproximação do real, o fotografado. Havia ainda uma preocupação insana em mostrar a direção de arte natural, o espaço ao redor. Dentro do quadro. Cenário escolhido. Mantido o figurino original. Luz natural, filme preto-e-branco, câmera 35mm, filme Tri-X ISO 400 e um cuidado enorme para manter intactas a coragem e a dignidade do outro”. Cuidado ético e moral da fotografia documental. O real a partir do meu olhar puro e cristalino. Autodidata. Sem referências. Vou e volto muitas vezes, até moro junto. Num dialogismo ainda não estudado, mas percebido como condição necessária a um retrato, e que discutia o documento como verdade, como o isso foi barthesiano. Dou por terminado o trabalho depois de cinco anos, com minha segunda filha, Camila sendo amamentada em meus seios. Leite que também fez sorrir Arnaldo, filho de uma sem-terra, no acampamento de Ronda Alta durante cinco dias. Afinal, havia leite jorrando.
“Exatamente o oposto da ilustração comercial, da mercadoria anônima, à revelia do princípio de realidade da fotografia-documento, mas também o extremo oposto do subjetivismo, o eu é uma singularidade mais fotográfica do que psicológica. É um eu fotográfico disposto de maneira plenamente assumida, com uma vivência pessoal, sentimental, até mesmo íntima. Em 1983, Robert Frank autor do livro Les Américains (1958), escreve: Gostaria de fazer um filme que misturasse minha vida, naquilo que ela tem de privado, e meu trabalho que é público, por definição: um filme que mostrasse como os dois pólos dessa dicotomia se juntam, se entrecruzam, se contradizem, lutam um contra o outro, visto que se completam, segundo os momentos”. Os repórteres que testemunhavam tinham uma relação direta e controlada com o real; os fotógrafos que se exprimem mantém com ele uma relação indireta e livre. De uma maneira intensa faz explodir o regime da fotografia-documento, que atingiu seu apogeu com Henri Cartier-Bresson.”
OS URBANOS
Nos anos 80 surge em Porto Alegre um jornal diário ligado a Gazeta Mercantil de São Paulo chamado "Diário do Sul". Chegou trazendo as características de um jornal "standard", com um design gráfico bastante sofisticado e tratando basicamente de política, economia e cultura. O uso acentuado do retrato exigiu um cuidadoso estudo. Queremos a síntese, o ousado, o original, o retrato que ainda não foi feito. De preferência o retrato que recolha todas as inscrições de personalidade, ofício, plasticidade e cenário criando um clima de cumplicidade com o fotografado. Filmes preto-e-branco, 35 mm, revelados por cuidadoso laboratorista. As imagens só passavam para as editorias depois de uma criteriosa pré-edição feita pelo fotógrafo junto ao editor de fotografia. Num momento seguinte, os editores de texto, diagramadores e o editor de fotografia colocavam texto e as fotos na página. Informação, criação e estética eram objetivos acordados nas suas escolhas. O projeto gráfico do jornal havia sido pensado reconhecendo a fotografia como um texto imagético. As fotos mantinham sempre seu recorte original e o retângulo áureo preservado. Seu tamanho e colocação na página eram determinados pelo ineditismo e competência tanto do texto quanto da imagem para aquela matéria. Em geral a busca era a da síntese. Uma construção de mão dupla, contando sempre com a participação ativa do fotografado na criação de uma imagem que fizesse sentido com o seu estar no mundo. Colocava todos os elementos da linguagem fotográfica a serviço de um suporte com características bem determinadas: uma mídia informativa. Com as imagens denunciando a presença consentida do fotógrafo, contaminadas por sua estética que buscava a poesia.
“A postura de Robert Frank colabora para enfraquecer o dispositivo platônico da fotografia. Na medida que Frank não mostra sem se mostrar, ele insere a força de um eu entre a coisa (o referente) e a imagem. A onipresença do sujeito na fotografia-expressão se opõe à rejeição da individualidade do operador pela fotografia-documento. A ficção da objetividade da representação de coisas ou mesmo de estados de coisas, no que diz respeito à apresentação dos acontecimentos: mesmo aqueles que surjam, entre visível e invisível, no contato sempre singular de um sujeito, de um mundo e de uma câmera fotográfica. Se essas fotos rompem com a estética documental é porque elas não representam (alguma coisa que foi), mas apresentam (alguma coisa que aconteceu); é porque não remetem às coisas, mas aos acontecimentos; é porque elas quebram a lógica binária da aderência direta com as coisas pela afirmação de uma individualidade. Da nitidez ao desfocado, da distância à proximidade, da objetiva normal à grande angular, da geometria ao acaso, da transparência à enunciação; aí se opõem dois regimes de enunciados fotográficos, duas práticas da fotografia, e duas concepções filosóficas. Jean-François Lyotard, diria que, contra a ilusão do documental, que reduz o mundo ao visível, Robert Frank “torna visíveis os fatos que o campo visual esconde e exige invisíveis, que dependem não somente do olho (do príncipe), mas do espírito (vagabundo)”. Esse desafio se dirige ao documental e consiste em inventar uma prática da fotografia que aceite que o campo visual esconde e exige invisíveis ”que ele não dependa somente do olho, mas também do espírito.”
OS ESCRITORES
Nos 90, empunhando uma câmera 6x7, médio formato, me deparei com um desafio num primeiro momento assustador: os retratos dos escritores gaúchos Ciro Martins, Carlos Reverbel, Lya Luft, Luiz Fernando Veríssimo, José Antônio Pinheiro Machado, Tabajara Ruas e João Gilberto Noll. Os escritores falariam sobre sete décadas da cultura no RGS. Inicialmente busquei um conceito que criasse unidade aos retratos: o preto-e-branco, o médio formato e o artista no cenário de seu ofício além de um conhecimento prévio do seu mundo e sua obra através de leituras e de conversas, incluindo ainda seus métodos de trabalho. Nas imagens, o escritor recriando o clima de seus personagens ou nos seus locais de criação. Luz de estúdio nas locações e a busca da intimidade ficcionada, tendo o próprio retratado como protagonista. Já não era mais possível trabalhar sem assistente, sem tripés, tochas de luz, fios e outras tralhas. Um rolo de filme 6x7cm possui dez fotogramas. Num cálculo de dois filmes por captação, o primeiro deles acabou sempre sendo eliminado no final de cada edição: era o rascunho.
“O fotógrafo e o modelo estão engajados em um mesmo projeto. Esse gênero de reportagem tem assim, necessidade da duração para que se estabeleça um diálogo prolongado e aprofundado com os modelos. Enquanto a maioria dos repórteres, absorvidos pelo desvario da concorrência internacional das imagens, passam, e só fazem isso sem a possibilidade de voltar, outros procedem diferentemente: eles vem, ficam e voltam. Eles trocam e dão, pois se inscrevem em ações de caráter mais social do que mercantil, concebidas em favor dos modelos. Dentro dessa estrutura fotografar não é mais roubar, e posar não significa mais se oferecer inutilmente aos fotógrafos de passagem. O modelo torna-se um ator, um verdadeiro parceiro do sujeito. A astúcia do ladrão cede lugar à capacidade do fotografo em ganhar a confiança de seus modelos parceiros. Seguramente mesos submetida à dominação do mercado, a postura dialógica procura, ao contrário, produzir o verdadeiro. Atento às pessoas, preocupado em nunca lhes trair a confiança, e preocupado em colocá-las no centro do processo, tal procedimento vai contra reportagens onde o Outro é quase apenas um objeto, onde a imagem prevalece sobre as pessoas.
Logo, a reportagem dialógica não procura representar, registrar, as aparências, mas exprimir situações humanas que ultrapassem amplamente a ordem do visível. O dialogismo sucede ao monologismo da fotografia-documento... Inventar formas e procedimentos, uma espécie de nova língua fotográfica, para transformar os regimes do visível e do invisível, para acessar o que está sob nossos olhos, mas que não sabemos ver. Não fotografar as coisas ou as pessoas, mas fotografar o estado das coisas e com as pessoas.”
RETRATOS DE CASAMENTO
Uma tarde de sábado em uma praia de Santa Catarina conhecida como Pântano do Sul: dia da festa da brota e um baile para os moradores no salão da igreja. Inusitado o suficiente para fazer arder a curiosidade. Era homem dançando com homem, mulher com mulher, alto com baixa, gorda com magro, camisa de pano volta-ao-mundo verde-água, brinco de rosa de pano cor-de-rosa, calça vincada e um aroma de perfume muito doce e desconhecido no ar. Imagens que se tornaram uma obsessão. No final dos anos 80 construí uma tenda de um plástico translúcido. Um espaço de 4 metros quadrados com uma velha lona verde militar borrada com cera vermelha e poeira no fundo. Tenda, assistentes, produtoras e embarcamos. Foram seis gratificantes e penosos meses. Ficção mesclada de realidade, os vinte casais foram criados, plasmados e expostos em vários estados, inclusive fora do país. Em preto e branco, negativo de médio formato, filme ISO 400 e muito trabalho, muitos acasos, suor e lágrimas. Primeiro prêmio "Concorrência Fiat" Região Sul, um concurso nacional de projetos em artes plásticas. O fundo, de extrema importância nas primeiras imagens como referencia de espaço e lugar em Os Colonos, passa e ser uma ficção do real nos Retratos. A luz natural passa a contar com o aporte das tochas de luz artificial e muitos rebatedores. A Câmera mudou de formato, passou a ser uma 6x7cm, dona de um negativo maior e bem mais rico em tons de cinza, além de um grão quase imperceptível. Em Retratos de Casamento, além dessas questões técnicas muito mais elaboradas, o fundo se torna um grande borrão igual em todas as imagens: em cena somente a ficção do casal.
“Uma nova versão do alhures: os fotógrafos-artistas que, concedendo um lugar preponderante à matéria, à sombra, à ficção, se situam no pólo oposto da ética documental e da transparência, criando um novo tipo de alhures. Não mais fundamentado nas capacidades do documento de se reaproximar, exumar ou descrever, mas nos poderes de uma escrita fotográfica de afastar e confundir. Transformar o próximo em estranho, em mistério, em longínquo, suprimir a nitidez dos contornos, aliviar das provas o peso de infinitas matérias pictóricas ou gráficas, mobilizar procedimentos antigos, frustrar, graças a mão, a fria objetividade dos aparelhos, etc; todos esses efeitos neopictorialistas de escrita contribuem para traçar um horizonte imaginário, o mais afastado Possível do banal realismo e da trivial realidade das coisas e do mundo.”
A ALMA
A Alma fecha o quadro no rosto. Volto a não precisar mais da ajuda de produtores e assistentes. Só quatro agora, no estúdio: o personagem, a luz, a câmera e a fotógrafa. Sem adereços, sem figurino, sem fundos, sem nada. Começa aí uma busca zen, a essência, o sutil, o simples, a verdade do olho que vê o olho que é olhado, fixamente: o rosto. Várias foram as personalidades, célebres ou não, retratados dessa maneira. O enquadramento virou minha obsessão. Nenhum argumento conseguiu mudar a primeira e definitiva imagem que aparecia em minha mente: o rosto!
“Em quadros fotográficos de dimensões às vezes imponentes, que agora ocupam as galerias e os museus, o lento e minucioso trabalho da mão é totalmente abolido ou subordinado a uma máquina e a um processo tecnológico. O tradicional contato direto entre o artista e sua tela é substituído pelo contato à distância entre uma coisa e uma superfície fotossensível. A fabricação manual e artesanal da imagem se esfuma, em prol da seleção e do registro químico... De um lado substitui a habilidade manual por um saber-fazer tecnológico, de outro, restringe o processo de escolha antes do enquadramento ou, principalmente, no registro dele. A arte-fotografia faz, assim, a arte ir a deriva. Com os ready-made de Duchamp, criar não significava mais fabricar (manualmente), mas escolher. Ao delegar a fabricação a uma máquina, a arte-fotografia conduz a esse limite, onde criar é enquadrar.”
O ACASO
É em "Acaso" que a grande ruptura se dá. Ao passar pela lata de lixo do laboratório notei, em meio a uma quantidade enorme de fotos descartadas pela sua falta de qualidade técnica, salientar-se num ponto negro um rasgo de luz interessante. Era uma imagem pequena de um casal num idílio teatral. Esse raio de luz, na diagonal, passava pelos olhos da atriz, de um lado ao outro do papel fotográfico. Resolvi guardar e também dar mais atenção à sucata do laboratório, onde comecei a encontrar mais fotos com toda uma gama desordenada de químicos se processando naturalmente. Passei a deixar as cópias fotográficas "erradas” coladas nas paredes do laboratório durante um tempo em que as portas abriam e fechavam, deixando um pouco de luz entrar: o caos instaurado. Num determinado momento, fixando meu olhar nas imagens me deparava com as mais sublimes transformações. Esse era o momento de fixar os tons rosa, os verdes, a prata escorrendo pelas bordas, imagens duplas, belas bolhas de ar. Aos poucos foi se montando uma série inicialmente chamada “trash”. Era o meu lixo, se acumulando por mais de cinco anos na gaveta. No ano de 2001 irrompeu uma exposição de oito imagens em formato 1m x 1,20 na Galeria Lunara, Usina do Gasômetro, o “Acaso”. Os cinco anos seguintes se passaram aparentemente sem a necessidade de fazer uma única imagem: havia surgido a professora.
“No final do século XX talvez por causa das incertezas do futuro e das dificuldades do presente, certamente em razão da imensa desconfiança que avança em grande número de setores da sociedade, certas obras adotam posturas de recuo. Recuo no ordinário ou no derrisório; recuo na intimidade; recuo na identidade sexual, social ou étnica; recuo também no nada, no vazio. Recuar para proteger-se de qualquer coisa excessiva, diferente, estranha. Em outros termos, reterritorializar-se à margem dos grandes fluxos que atravessam um mundo em ebulição. Ancorar no local para escapar `a hegemonia do global. Uma maneira de microresistência. “*
s.i.l.ê.n.c.i.o
Essas imagens começaram a nascer durante a pandemia da COVID-19. em 17 de março de 2020. Ontem foi o #dia 70. Jamais imaginei que esse caminho seria tão longo e sofrido. Se isolar para impedir que a peste chegasse aos humanos da família, amigos, conhecidos... Assistir agora a quantidade de brasileiros que aos poucos estão sendo enterrados em não identificadas covas-rasa, amontoados, sem luto, sem velório, sem caixão. A dor se espalhando furiosamente... Hoje, 27 de maio de 2020 já são mais 25 mil brasileiros mortos. Inimaginável...
Foram mais de 70 dias... E não tenho 70 imagens. Em alguns dias não consegui trabalhar. A idéia inicial de uma imagem por dia tornou-se em alguns momentos impossível. A pressão provocada pela possibilidade da morte iminente foi mais forte. Estar fisicamente longe da minha filha e de meu neto, sem os corpos, o calor, o abraço, virou tortura...
As flores tem sido minha matéria prima e meu foco há mais de três anos. Agora já nem são mais fotografias. So’imagens! Pretendo contar dessa bruxaria no dia em que estiver abrindo uma iluminada exposição onde entregarei a cada pessoa que lá estiver, um livro com as flores todas. Entre não ter mais futuro, optei por esse sonho. As flores agora estão dentro de algo maior: a BOTÂNICA. E eu, prefiro viver esse sonho a ser esmagada por essa horrorosa e cruel realidade jamais imaginada.
A beleza sempre será possível!
* as referências teóricas foram selecionadas a partir do livro A fotografia - entre documento e arte contemporânea. de Andre Roullé. professor assistente na Universidade de Paris VIII, unidade de formação em arte, estética filsofia. ed. senac, são paulo, 2009.